Dr.CarlosChagas
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A Descoberta da Doença de Chagas
1999 - Há 90 anos foi descoberta a Doença de Chagas!
Extrato do livro: "Meu Pai", de Carlos Chagas Filho.

          Em 1909, o destino deu a meu pai a oportunidade que iria consagrá-lo definitivamente. É que, perseguindo um velho anseio de Pedro II, tentava a Estrada de Ferro Central do Brasil ligar o país do norte ao sul, unindo o Rio de Janeiro a Belém do Pará por uma ferrovia. Galgadas as íngremes encostas da Mantiqueira e evitadas as serras do Pinhaço e do Cabral, encaminhavam-se os trabalhos, já em plena bacia do São Francisco, para Pirapora. Lá seria vencida a travessia do grande rio e, atingidos os gerais do sertão baiano, mais fácil seria o prosseguimento da gigantesca iniciativa. Encontravam-se, entretanto, em 1908, paralisados os trabalhos em um vilarejo, Lassance, distante cerca de oitenta quilômetros de Pirapora. A malária, com terrível morbidade, impedia o prosseguimento da grande empreitada. Praticamente, todos os capatazes e seus operários, desprevenidos, não utilizavam quinina e, assim, tornavam-se presas da doença do sertão. A maleita não poupava ninguém.                   

          Consultado Oswaldo Cruz pelo governo federal, indica ele a ida a Lassance de Chagas, uma vez que possuía comprovada experiência no combate à malária, tanto em Itatinga como no Xerém. Meu pai leva consigo, além dessas experiências, uma sólida formação acadêmica e científica, na qual o tirocínio clínico se associa, perfeitamente, a uma capacidade laboratorial que adquirira nas modestas instalações de Fajardo, mas que ampliara decisivamente na sua permanência, ainda que breve, em Manguinhos. Deixando a mulher em Juiz de Fora, com os pais, segue, resolutamente, para a complementação do seu destino, pois no norte de Minas realizará a descoberta mais importante na história científica do Brasil, única na história da medicina.

          Em Lassance, Chagas depara com um quadro nosológico de difícil interpretação. É o momento em que o sucesso da terapêutica, pelo arsênico, na sífilis fazia com que alguns dos maiores clínicos do Rio usassem uma expressão que é, hoje, hilariante: "Face a um doente é preciso, antes de tudo, pensar sifiliticamente." A população, estropiada pela desnutrição, envelhecida pela malária, não podia ser vítima do morbus gallicus, que apenas ali chegara com as rameiras que acompanhavam os trabalhadores da estrada de ferro. A população quaixava-se de incômodo baticum e apresentava arritmias, sinais de insuficiência cardíaca, sendo freqüente a morte súbita, inexplicável.

          Chagas começou, consciente ou inconscientemente, a tentar encontrar o fio da meada. Sorriu-lhe de novo o destino. Soube, pelo engenheiro Catarino, responsável pelas obras da estrada de ferro, da presença de uma infinidade de insetos hematófagos, os barbeiros ou chupões, alojados nas frestas das paredes de pau-a-pique. Estes sugadores de sangue saíam, à noite, para se alimentar, picando no rosto os habitantes das paupérrimas choças.

          Como na região de planalto a noite é sempre mais fria, a única parte não coberta pelos andrajos da população sem recursos é a face. Daí o nome de barbeiros que recebem esses insetos. Meu pai levou os insetos ao seu laboratório, que era uma parte do seu quarto de dormir, no vagão de estrada de ferro estacionado no desvio da estação de Lassance. Examinando o tubo digestivo desses triatomíneos, Chagas encontra um novo tripanossomo, que logo distingue de todos os outros que havia estudado e, particularmente, de um que havia descrito anteriormente no estado das Minas Gerais, o Trypanosoma minasense.

          Não é difícil imaginar qual a idéia que brotou no espírito de Chagas nessa ocasião, foi a seguinte: "Poderá o tripanossomo que se encontra nos barbeiros ser a causa do quadro nosológico que encontro em Lassance?" Esta interrogação pertubou durante largo tempo as suas noites insones. Bom cientista, viu que ela só poderia ser respondida depois de realizada a necessária experimentação.

          A primeira questão a ser esclarecida era saber se o tripanossomo encontrado no barbeiro seria capaz de infectar mamíferos. O animal ideal para essa experiência era o sagüi, mas a experimentação em Lassance era impossível porque os macacos da região poderiam estar infectados por outros tripanossomos. Sendo assim, meu pai envia a Oswaldo Cruz um certo número de barbeiros, pedindo-lhe que infectasse sagüis, criados em laboratório, com o material retirado do tubo digestivo. Alguns dias depois, Oswaldo Cruz informa a Chagas, por telegrama, que um dos macacos adoecera. Pedia a sua vinda imediata ao Rio de Janeiro para verificar a infecção experimental. Chagas parte imediatamente.

          Quantas esperanças e quantas angústias lhe terão assaltado o espírito na longa viagem que empreendeu? O tempo nas baldeações parece perdido. A primeira em Corinto; o comboio, quase sempre pontual, atrasou-se em mais de uma hora; a segunda em Belo Horizonte. Tem a impressão de que os trens não caminham céleres e as horas parecem não passar no noturno que o transporta à capital. Em Santos Dumont o trem se atrasa na espera do correspondente da Oeste de Minas, que traz passageiros de Divinópolis, Oliveira, Bom Sucesso e São João Del Rey. Chagas não se detém em Juiz de Fora onde deixara, na casa do sogro, seu filho e sua mulher, que foi encontrá-lo na estação, alta madrugada. Se a descida da Mantiqueira lhe pareceu uma eternidade, as horas realmente não passavam na descida da serra do Mar e na aproximação do Rio, retardada por longa parada em Entre Rios. Enfim, o subúrbio e a estação terminal!

          Dali a Manguinhos o caminho era difícil. Oswaldo manda buscá-lo em seu próprio automóvel, ansioso que estava, como o próprio Chagas. Afinal, chega ao Instituto. Encontrou um dos macacos bastante adoentado com queratite nos olhos. No sangue deste sagüi encontrou o mesmo tripanossomo que vira no sangue dos macacos de Lassance e que denominara Trypanossoma cruzi, em homenagem ao seu mestre.

          A febre do reconhecimento da infecção experimental não lhe permite demorar-se por mais tempo longe do trabalho. Voltando a Lassance depois de breve passagem por Juiz de Fora, verifica a presença do Trypanossoma cruzi em cães e gatos e, logo depois, no tatu, que passou a considerar como reservatório silvestre do tripanossomo. No dia 14 de fevereiro de 1909, vem ao caramanchão, onde algumas de suas consultas eram dadas, uma doentinha de nove meses. Berenice era o seu nome. Apresentava ela febre alta, a face e o corpo com edema duro e ligeiro comprometimento do sistema nervoso. Estes sintomas não reproduziam as modalidades das infecções mais comuns. Examinado-lhe o sangue, Chagas encontrou o Trypanossoma cruzi. Era o primeiro caso da moléstia a que, mais tarde, se daria o nome de doença de Chagas, e com ele consolida-se, praticamente, o ciclo da descoberta no qual foi conhecido o primeiro, o vetor, em seguida o protozoário, agente causador da doença, os seus depositários domésticos e, por fim, um caso humano - tudo por um só pesquisador. É o início de uma epopéia científica que até hoje exige a atenção de especialistas do Brasil, da América Latina, do mundo inteiro.

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Berenice, uma criança em 1909, foi o primeiro caso descrito da doença de Chagas.
Ela morreu aos 82 anos, de insuficiência cardíaca, em junho de 1981.
Jornal da Tarde, 7 de maio de 1979.

          Ao mesmo tempo que Chagas descobre o Trypanossoma cruzi descreve, também, um outro protozoário que encontra nos pulmões dos pequenos macacos examinados em Lassance. Trata-se do protozoário que viria a ser denominado, mais tarde, Pneumocystis carinii. Admitiu Chagas, equivocadamente, a existência no ciclo evolutivo do Trypanossoma cruzi de duas formas de multiplicação: a forma binária, em que o organismo se multiplica, simultaneamente, em vários outros. Esta multiplicação esquizogônica seria uma fase da evolução do Trypanossoma cruzi, pelo que Chagas o colocou em um novo gênero: o Schizotrypanum. Assim se refere ao fato:

          "Nos primeiros estudos sobre a biologia do Trypanossoma cruzi, havia eu ligado ao ciclo evolutivo, no organismo dos vertebrados, formas parasitárias especiais, encontradas com extrema frequência no pulmão de cobaias infectadas. Foi mesmo dessa interpretação, na qual tivemos o assentimento de PROWAZEK e de MAX HARTMANN, que resultou na criação do gênero Schizotrypanum., para nele incluir a nova espécie de flagelado. Em virtude desta verificação, aproveitei durante algum tempo, como elemento de diagnóstico parasitário, a presença das formas referidas no pulmão das cobaias que haviam sido inoculadas com sangue de doentes, supostamente infectados. Entretanto, posteriormente foi verificado, primeiro pelo professor CARINI e por DELANOE  e depois por alguns pesquisadores de Manguinhos, que as formas parasitárias dos pulmões das cobaias nada tinham a ver com o Trypanossoma cruzi, e sim representam um outro parasito, o Pneumocistis. Pelo que os diagnósticos parasitários assim realizados, ficaram de todo ponto invalidados, e havia mister fundamentar de outro modo as nossas conclusões, no que diz respeito às formas crônicas da doença. E foi o que fizemos em grande número de autópsias, nas quais as localizações dos parasitas em diversos orgãos, e as lesões por ele ocasionadas, amplamente justificaram o diagnóstico clínico da principais modalidades da trypanozomiase, e estabeleceram, de modo definitivo e irrecusável, a ligação entre a causa e o efeito inevitável. Referirei os fatos com maiores minúcias: Das formas agudas da doença, caracterizadas pela presença, facilmente verificável, do Trypanossoma no sangue periférico, consegui, dentro de curto prazo, diversas observações clínicas, sobre as quais nenhuma objeção será admissível."

          O protozoário responsável pelas formas esquizogônicas vistas por Chagas foi descrito por Delanoe e Delanoe (Comptes Rendus, Paris, Académie des Sciences 155:658, 1912), que o denominaram Pneumocystis carinii. Não há dúvida, entretanto, de que a descrição do Pneumocystis carinii é de Chagas, como afirma P. Walzer num simpósio em que este protozoário foi estudado. Walzer assim se expressa: "O Pneumocystis carinii  foi descoberto em 1909 por Chagas que pensou ser ele uma variante do tripanosoma..."

          O Pneumocystis carinii produz uma pneumonia de células plasmáticas intersticiais, e tornou-se um parasito de grande significação por ser a pneumonia por ele produzida a doença oportunista que mais elimina os portadores da síndrome da imunodeficiência adquirida - Aids - produzida pelos vírus HIV.

          Meu pai tinha pela menina Berenice um carinho todo especial. Que emoção não terá tido quando, examinando o seu sangue naquele 14 de fevereiro de 1909, encontrou entre a lâmina e a lamínula o tropanossomo que vinha estudando!... A doentinha, que apresentava sinais de infecção aguda, era o primeiro caso humano da doença que viria a descrever. Ainda que controlador das suas emoções, Chagas sentiu seu pulso mais célere do que nunca e lamentou não ter alguém com quem pudesse discutir a importância do achado. Como terá aparecido nos perdidos do sertão mineiro o nome Berenice que a dramaturgia francesa, com Racine e Corneille, tornara famoso? Terá sido por intermédio do engenheiro Lassance, de origem francesa - e que deu o nome a esse pequeno canto do grande mapa das Minas Gerais -, que se torna presente na história da ciência tropical? Ou terá sido a passagem de um errante pastor protestante que levara ao conhecimento dos pais da criança o julgamento de Paulo de Tarso, tal como se lê nos Atos dos apóstolos?

          O mundo científico teve conhecimento da nova doença pela publicação de uma nota prévia no Brazil Médico, número 16, Ano XXIII, de 22 de abril de 1909, e pelas publicações que se sucederam em revistas nacionais e estrangeiras: "Über eine neue Trypanosomiasis des Menschen" (Archiv. f. Schiffs-u. Tropen-Hyg.,1909.Bd.13,n.11,p.351) e "Nouvelle espèce de trypanosomiase humaine". (Bull.Soc. Pathol. Exot., Tome II, número 6 pp. 304-7, 1909), sendo que o maior destaque seria dado à descoberta por Oswaldo Cruz que, a 22 de abril de 1909, fez uma apresentação, na Academia Nacional de Medicina, de descoberta de meu pai. A seguir, a própria Academia nomeou uma comissão de mestres, constituída por Miguel Couto, Nascimento Silva, Miguel Pereira, Antonio Austregésilo e Fernandes Figueira para ir a Lassance verificar o trabalho realizado por meu pai.

          A essa comissão incorporaram-se Oswaldo Cruz e Figueiredo Vasconcellos. Depois de ter a comissão estudado as provas apresentadas por Chagas, num modesto serão, após o jantar, à luz trêmula dos lampiões, ofuscados pela resplandecência de uma lua cheia, e pela claridade de centena de estrelas que nas noites claras dos sertões mineiros despreza a necessidade de qualquer fonte luminosa, Miguel Couto se levanta e, saudando meu pai, propões, sob os aplausos dos presentes, que a nova entidade mórbida se chame "moléstia de Chagas".

          Nada melhor do que repetir as palavras com que Carlos Chagas descreve a sua extraordinária experiência em Lassance:

          Na descoberta da Trypanozomiase americana, e principalmente nas indicações de raciocínio que aqui nos valeram resultados definitivos, encontramos nova diretriz para pesquisas experimentais similares, destinadas a esclarecer problemas obscuros de patologia humana.

          Foi essa uma verificação biológica realizada sob moldes inteiramente diversos daqueles que, de regra, conduzem ao reconhecimento etiopatogênico das doenças, ou aumentam a nosologia de novas entidades mórbidas. E porque assim é, uma vez que nessa descoberta verificam-se aspectos interessantes e incidentes aproveitáveis à orientação dos pesquisadores, vimos referir os fatos de modo minudente e exato, deles salientando os pontos de maior valia.

          A verificação da doença precedeu aqui a descoberta do parasito que a ocasiona, e quando no sangue periférico de uma criança febricitante, obsevamos o flagelado patogênico, de sua biologia já possuimos noção completa, adquirida em demorados estudos anteriores.

          Mais vale, para maior clareza e elucidação decisiva do assunto, referir os fatos em sua sequência ininterrupta:

          A ocorrência de grande epidemia de malária em operários do Governo, nos trabalhos de construção da Estrada de Ferro Central do Brasil, no vale do Rio das Velhas, fez com que fosse solicitada, pelo Ministro Miguel Calmon, providências a Oswaldo Cruz. Este atendeu pressuroso à solicitação e, empenhado em prosseguir nas campanhas anti-paludicas, com êxito executadas em outras regiões do país, resolveu-me confiar-me o encargo das medidas sanitárias.

          Em companhia do Dr. BELISÁRIO PENNA, por mim convidado para auxiliar da missão, segui para os sertões mineiros e lá nos instalamos nas margens do Rio Bicudo, onde permaneciam, retardados pela intensa epidemia, os trabalhos da via-férrea. Iniciamos aí a profilaxia da malária e dela conseguimos resultados dos mais propícios, o que permitiu o prosseguimento regular dos serviços de construção.

          Mais de um ano permanecemos naquela zona, sem que houvessemos sabido da existência ali, nas choupanas dos regionais, de um inseto hematófago, denominado vulgarmente barbeiro, chupão ou chupança. Já nessa época tivemos oportunidade de realizar vasta observção clínica, e de estudar numerosos casos mórbidos nos habitantes da região, tanto naqueles sujeitos à infecção palúdica, porque residiam em vales de grandes e pequenos rios, quanto ainda em outros, que habitando em zonas mais ou menos elevadas e montanhosas, nenhum sinal apresentavam de malária.

          E desde então foi-nos penosa a absoluta impossibilidade de classificar, no quadro nosológico conhecido, muito dos casos mórbidos que se ofereciam a nosso estudo. Nem valiam, para elucidação do diagnóstico, os recursos experimentais do laboratório, e nem decidiam os elementos da semiótica mais segura e meditada. Alguma coisa de novo, nos domínios da patologia, ali perdurava desconhecida, e se impunha a nossa curiosidade.

          Numa viagem a Pirapora, e quando pernoitavamos, o Dr. BELISÁRIO PENNA e eu, no acampamento de engenheiros, encarregados dos estudos da linha férrea, conhecemos o "barbeiro", que nos foi mostrado pelo Dr. CANTARINO MOTTA, chefe da comissão de engenheiros. 

          Referidos, que nos foram os hábitos domiciliários do inseto, sua hematofagia e abundante proliferação em todas as habitações humanas da região, ficamos desde logo interessados em conhecer o barbeiro na sua biologia exata, e principalmente em verificar a hipótese, surgida imediatamente, de ser ele, acaso, o transmissor de algum parasita ao homem, ou a outro vertebrado.

          O papel de diversos hematófagos na transmissão de doenças humanas, e na de algumas trypanossomíases de mamíferos, orientou agora meu raciocínio e levou-me a conseguir novos exemplares do inseto, a fim de pesquisar no tubo digestivo deles, ou nas glândulas salivares, qualquer parasita, do qual fosse o barbeiro o hospedador intermediário. Dissecando os insetos, "no intestino posteriro de cada um encontrei numerosos flagelados, que apresentavam as características morfológicas de crithidias." Esta verificação conduziu-me a duas hipóteses: ou seria o flagelado observado parasita natural do inseto, sem qualquer ação patogênica, ou representaria estágio evolutivo de um hemo-flagelado de vertebrado, quiçá do próprio homem.

          Anteriormente havia eu encontrado nova espécie de trypanozoma nos macacos do gênero Callitrix (Callitrix penicilata); e dada a frequência da infecção dos saguis pelo Trypanozoma minasensi, espécie por mim descrita de modo minucioso, suspeitei fossem as crithidias, observadas no intestino posterior do barbeiro, fase evolutiva desse trypanozoma, que seria então transmitido pelo inseto. E como na região todos os macacos se mostrassem parasitados, as experiências de transmissão, visando a hipótese de formulada, não poderiam ser realizadas, em virtude de uma causa de erro inevitável. Foi essa a razão de haverem sido enviados por mim diversos insetos ao meu inolvidável mestre OSWALDO CRUZ, a fim de que fossem eles alimentados em macacos de gênero Callitrix, e que estivessem livres de infecção pelo Trypanozoma minasensi. Decorridos 20 ou 30 dias, quando de regresso a Manguinhos, examinei o sangue de um dos macacos, que estivera em contato com os barbeiros, e no sangue periférico dele verifiquei a presença de um trypanozoma, suposto, no primeiro momento, e antes de caracterização morfológica pelos métodos de técnica, ser o Trypanozoma minasensi. Imediatamente após a identificação do flagelado no estado de vida, pelo exame de sangue entre lâmina e lamínula, fiz preparações microscópicas fixadas e coradas, no intuito de reconhecer a espécie ou de caracterizá-la como nova. E desta forma verifiquei que o trypanozoma observado apresentava aspecto morfológico diverso do observado no Trypanozoma minasensi, e não mostrava semelhança com qualquer outra espécie do mesmo gênero. Tratava-se, sem dúvida, de um trypanozoma novo, caracterizado principalmente pelo tamanho de seu blefaroplasto, o mais volumoso de quantos eu conhecia, situado na extremidade posterior do flagelado (lado oposto ao do flagelo livre).

          Depois de haver estudado a morfologia do novo parasito, iniciei pesquisas relativas a sua biologia. Em experiências repetidas, consegui novas infecções de laboratório, não só em macacos do gênero Callitrix, quanto ainda em cobaias, coelhos e pequenos cães. Tais infecções, algumas vezes obtidas pelas picadas do inseto, sobretudo o foram pela inoculação dos flagelados encontrados no intestino. Assim, e em demoradas pesquisas, caracterizei definitivamente o trypanozoma como espécie nova e estabeleci, em experiências irrecusáveis, o papel transmissor do barbeiro. Por outro lado, reconheci as propriedades patogênicas do trypanozoma, que ocasionava a morte, em tempo variável, dos pequenos animais do laboratório, a maioria das vezes por septicemia, sem que os parasitas desaparecessem do sangue periférico. Outras pesquisas realizei sobre o assunto, concernentes ao duplo ciclo evolutivo do trypanozoma, nos vertebrados e no inseto transmissor, as formas evolutivas no intestino do barbeiro, a cultura artificial do protozoário, etc.

          E foi depois disso, depois de adquirido amplo conhecimento do trypanozoma, na sua morfologia, na sua biologia geral, na sua ação patogênica, que iniciei a segunda parte de minhas pesquisas, aquela de resultados mais salientes no que respeita a patologia humana. A nova espécie de trypanozoma foi por mim denominada Trypanozoma cruzi, em homenagem ao Mestre, de inapagável recordação, a quem tudo devo na carreira científica, e que nesse estudos me foi orientador de largas vistas, o conselheiro de todos os momentos, o espírito de luz e de bondade, sempre pressuroso em dispensar-me os benefícios de seu saber e em abrigar-me na grandeza de seu afeto. É mais dele do que meu o pequeno patrimônio da minha vida profissiional, e nesse trabalhos quanto exista de proveitoso, eu atribuo, com ufania e sinceridade, a valia de seus ensinamentos ao exemplo de sua fé, a influência decisiva de seu ânimo forte e de sua alma abnegada sobre quantos tivemos a boa ventura de encontrá-lo na vida e dele receber o influxo bemfazejo, que decidiu de nossos destinos..."

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Manuscrito de Carlos Chagas
em que define a nova doença
transmitida pelo Trypanosoma cruzi.

          Em 26 de outubro de 1910, a Academia ouve, com o maior interesse, a Conferência de Chagas sobre a Tripanossomíase americana durante a qual meu pai apresenta doentes vindos de Lassance. A título excepcional, a Academia, presidida por Miguel Pereira, faz Chagas seu membro titular, aos 31 anos, sem que houvesse vaga. A medida de exceção não recebeu a menor crítica, tendo os jornais do Rio de Janeiro noticiado, com ênfase, o acontecimento.

          Essa conferência na Academia torna pública a existência da doença de Chagas. Pouco a pouco esse conhecimento vai de difundindo pelo Brasil e pelos países da América Latina. Cabe a Segóvia, da República do Salvador, descrever o primeiro caso da doença de Chagas observado fora do Brasil.

          A seguir, em vários países, pesquisadores começam a estudar os triatomíneos, sendo importante assinalar o que Angel Gaminara afirma em sua Memória, após ter encontrado barbeiros infectados no Uruguai, e não haver ainda visto casos da doença: "Sin embargo estoy cientificamente autorizado a afirmar que estos casos agudos se encontrarán en un tiempo no lejano."

          Certamente, Gaminara segue a orientação de Chagas, que admitia que a molétia estava ainda no início da adaptação do tripanossomo ao hospedeiro humano. Interessou-se ele pelo problema depois de ter assistido ao debate científico travado de um lado, por Chagas e, do outro, por Kraus, Rosenbush  e Maggio, que se opuseram a meu pai no decurso da Primeira Conferência Sul-Americana de Higiene, Microbiologia e Patologia, reunida em Buenos Aires, em 1916.

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Ilustração representando o ciclo da doença de Chagas,
impressa em silk-screen em camisetas distribuídas
pela P. Design, Co., Oregon, nos Estados Unidos.

1. O barbeiro pica uma pessoa infectada com o parasita.
2. No seu intestino os parasitas se reproduzem.
3. O barbeiro deposita as fezes na pele da pessoa, que se infecta com o Trypanosoma cruzi quando se coça.
4. Os parasitas invadem primeiro as células da pele e em seguida a circulação sanguínea.
5. Na fase assintomática da doença, os Trypanosoma cruzi se concentram nas fibras musculares.
6. O ciclo recomeça quando a pessoa é picada de novo.

          A Primeira Conferência Internacional sobre a Doença de Chagas, realizada no Rio de Janeiro, em 1959, comemorando o cinquentenário da descoberta da moléstia, vem mostrar uma suspreendente extensão da tripanossomíase na região latino-americana, do México ao sul do Chile, em algumas zonas com maior incidência do que em outras. Nessa ocasião, calculou-se o número de chagásicos na região entre 9 e 11 milhões.

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Carlos Chagas, ao microscópio,
sendo observado pelo colega Rocha Lima.

Glossário:
(para retornar ao mesmo local do texto, basta clicar sobre a palavra.)

Tirocínio - prática, exercício.
Nosológico - nosologia, parte da medicina que trata da classificação das doenças.
Maleita - malária.
Baticum - pulsação forte do coração e das artérias.
Andrajos - vestes esfarrapadas.
Patogênico - relativo à patogenia, mecnismo pelo qual os agentes mórbidos produzem as doenças.
Blefaroplasto - corpúsculo situado por fora do núcleo e ligado à base dos flagelos.

          [índice]

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