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Navio de Assistência Hospitalar "Carlos Chagas"
Navio-esperança


Texto e fotos copiados da página do
Globo Repórter
- 23 de abril de 2004
clique aqui e tenha acesso à página do Globo Repórter
(com vídeos da matéria).

São 4,5 milhões de quilômetros quadrados – mais da metade do território nacional. Na maior floresta tropical do mundo, a natureza assume proporções incomparáveis. Tudo é grandioso: o verde, a água, a miséria. Debaixo das árvores gigantescas, esconde-se o Brasil sem médicos. Um outro país, refém da pobreza, das doenças, da fome.

Quem vive na mais cobiçada das florestas não tem acesso a um direito básico: assistência médica rápida e eficiente. Ao homem amazônico, restaram ervas, raízes e troncos, chás e infusões para a cura de todos os males. Mas, pelo menos uma vez a cada ano, a esperança chega de barco.

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Tempo de alegria na floresta. É a chegada da "lancha", nome que os caboclos dão ao o Navio-Hospital Carlos Chagas. Um barco salva-vidas que tem a bordo médicos, dentistas, farmacêuticos e muita vontade de ajudar.

O Carlos Chagas é um dos três navios da Marinha brasileira que prestam assistência médica às comunidades que vivem às margens dos rios da Amazônia. A cada mês, pelo menos dois navios deixam Manaus para navegar nos rios da região. Por ano, eles fazem 100 mil atendimentos.

De Manaus à foz do Rio Purus são 200 quilômetros de distância. A cidade ainda está à vista quando nos aproximamos do encontro das águas. Os rios Negro e Solimões se enfrentam. Medem forças, mas não se misturam.

No barrento Solimões, um dia e uma noite de viagem antes de chegar à boca do Purus. A primeira parada é em Beruri. A cidade tem 11 mil habitantes e pelo menos 1 mil são pacientes do navio-hospital.

A notícia da chegada movimenta Beruri. A fila já está formada em frente à escola-ambulatório. As salas de aula serão transformadas em consultórios e as crianças vão para o jardim. A professora é a tenente Camargo, dentista do navio. Dor, os moradores conhecem bem.

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Os médicos ouvem todas as queixas com muita paciência. Mas a primeira urgência aparece do lado de fora. Jean, de 11 anos, levou um tombo em casa e cortou o supercílio. O tenente Enzio Monteiro, clínico geral, avaliou a situação e decidiu que era preciso agir rápido.
“Dificilmente a gente pega um ferimento como o que acabou de acontecer. Geralmente, a gente pega o ferimento infectado, o que fica mais complicado”, conta o tenente-médico Monteiro.

Em menos de cinco minutos, Jean chegou ao centro cirúrgico do navio. Enquanto costura o supercílio do garoto, o tenente-médico parece viajar nas lembranças de infância.

“Quando eu era pequeno, queria ser bombeiro. Achava fascinante andar atrás do carro”, revela ele.

Mas acabou se decidindo pela medicina quando tinha a idade de Jean.

“Eu venho de família humilde. Quando eu era menor, meu pai enfrentava filas de postos de saúde para minha mãe ser atendida. O médico olhava para o rosto dela e dizia para ela tomar um remedinho ir embora”, lembra o tenente-médico.

Em Manaus, ao ver o depoimento do filho, dona Maria de Fátima Monteiro chorou.

“Eu fico emocionada porque sei que ele está realizado, fazendo o que realmente gosta”, diz a mãe do tenente-médico Enzio.

“Se eu não fosse médico, eu seria médico. Não tem jeito”, afirma ele.


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Casas Flutuantes

O Navio-Hospital Carlos Chagas segue em busca de novas missões. Um helicóptero é o grande aliado na operação salva-vidas – encurta distâncias e apressa o encontro dos médicos com a população.

Próxima parada é em Cuiuanã, uma pequena vila que fica em um dos braços do Rio Purus. Gente que vive com um rio a seus pés.

As construções são apoiadas em pilotis bem altos. Uma tentativa de proteger as casas contra a maré. Nesta época, as águas chegam a subir 20 metros. Até o orelhão fica no alto. Outras famílias preferem casas flutuantes.

O professor Roberto Teixeira vive com a mulher e os filhos em uma casa construída sobre grossos troncos de açacu. A madeira é leve, resistente a cupins e à umidade. As casas ficam amarradas por cordas. À medida que o rio sobe, os moradores vão recolhendo a corda, para que as casas fiquem sempre seguras.

“Quando a água sobe, a gente finca os mourões pela beira do barranco, porque a correnteza fica forte. A correnteza já levou uma casa. Quando isso acontece, temos que pegar o barco para trazê-la de volta”, conta o professor.

A dona de casa Audilete dos Santos, mulher do professor Roberto, parece constrangida, sempre se desculpando pela desarrumação, que só ela enxerga.

“As panelas podem brilhar ainda mais”, ressalta a moradora.

Quem prepara o almoço é o marido, que acabou de arrancar um dente e ainda sente o efeito da anestesia.

Na escola, transformada em mini-hospital, quem já foi atendido recebe medicamentos. Em alguns casos – no das crianças, principalmente –, a dose única é administrada ali mesmo. Para quem não sabe ler, a tenente Karina tem um recurso: desenhos nas embalagens dos medicamentos.

A fila de espera é grande. E como em qualquer fila de hospital, a conversa não muda. Onde encontrar atendimento médico? O socorro mais próximo fica a quatro horas de viagem de barco. Tempo que pode significar a diferença entre a vida e a morte.

Há seis meses, Joyce passou por uma situação limite. Vítima de uma forte hemorragia, foi salva por um médico da Marinha. Na fila, ela reconhece o tenente Azael de Souza Ribeiro. Ele, cuidando de outros pacientes, não percebeu. Mas, quando ouviu o nome familiar...

“Eu conheço a Joyce! Lembra de mim? Estou surpreso. Ela chegou entre a vida e a morte, com uma doença que ocorre em 20% das adolescentes que entram na primeira menstruação, uma hemorragia uterina disfuncional”, revela o tenente-médico.

Hoje ela está totalmente recuperada.

“É muito bem revê-la nesse estado. É sinal que tem valido a pena o pouco que a gente faz aqui na Amazônia. Pela gratificação de voltar à localidade e ver que as pessoas estão bem de saúde, vale a pena, com certeza”, diz o tenente-médico Azael.

Joyce nem sabe como agradecer. Mas o sorriso tímido, na despedida, é revelador. A "lancha" vai ter sempre um lugar especial no coração dela.


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Farmácia Natural

Nem canhões, nem metralhadoras. Em missões pela Amazônia, um navio da Marinha de Guerra carrega um outro arsenal: remédios, analgésicos, antibióticos, antiinflamatórios, vacinas, vitaminas. Produtos de tecnologia avançada, desconhecidos da maioria do povo amazônico, gente que usa a floresta como farmácia. O capitão-de-corveta Antônio Barbosa quer saber que segredos guardam as árvores, as folhas.

Movido pela mesma curiosidade que leva para a Amazônia cientistas do mundo inteiro, o doutor do navio-hospital quer conhecer as receitas caseiras, como o xarope que a dona de casa Odete Lima costuma fazer. Ela pega os ingredientes no quintal de casa: folhas de mangueira, de jambo, um ramo de erva cidreira e hortelã. As folhas, cortadas e lavadas, vão para a panela, com água e açúcar.

“Quando a criança está muito atacada com gripe ou tosse, eles dão os medicamentos da farmácia. Quando não resolve, eles me procuram. Se não tiver em casa, eu faço. Eles dão e a criança fica boa”, conta dona Odete.

Algumas horas depois, o xarope está pronto. O farmacêutico prova e aprova.

“Ele dá um efeito refrescante. A sensação de dormência na língua é uma característica do jambo. Não tem efeito colateral, desde que o paciente não seja diabético“, diz o oficial farmacêutico da Marinha.

A selva amazônica guarda fórmulas de vida ou morte. Cientistas que estudam a mais cobiçada mata do planeta caminham no fio da navalha. Ainda será preciso pesquisar muito para separar remédio e veneno.

O Instituto de Pesquisa da Amazônia (Inpa) tem um trabalho pioneiro. A pedido do Ministério da Saúde, está fazendo um levantamento que vai responder: as plantas têm, realmente, algum poder de cura?


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Para encontrar as respostas, é preciso conhecer os mistérios da selva. Trabalho para uma vida inteira. Desafio que fascina o botânico Juan Revilla. Ele é peruano, mas vive no Brasil há 20 anos. O botânico afirma que 300 plantas amazônicas, já catalogadas, mostraram um imenso potencial: poderão ser usadas na medicina, na fitoterapia e nas áreas de cosméticos e aromáticos.

“Nós estamos fazendo a pesquisa em 120 mil metros quadrados de floresta. Estamos inventariando e coletando todos os indivíduos maiores de 10 centímetros. Com isso, devemos ter aproximadamente 2 mil espécies”, revela o botânico.

Uma radiografia completa, de árvore em árvore. O tronco é medido, classificado e identificado. Para os galhos altos, um equipamento rústico, a peconha, facilita a subida e a retirada dos galhos. Mas quando o tronco não permite a escalada, as amostras são derrubadas à bala. Todo o material coletado é fotografado e depois embalado.

O xixuá é uma das plantas que fazem parte do levantamento do Inpa. No passado, flores e casca do xixuá só eram aproveitados para fazer licor. O produto tinha boa aceitação na Europa. Agora, a pesquisa pretende ampliar os conhecimentos sobre a planta.

A maripuama é outra planta.

“Para os indígenas, ela é conhecida como mirantã; em Manaus, como marapuama; e em Belém, como mirapuama. A pesquisa no Inpa está tentando determinar o teor dos princípios ativos na raiz, na casca, na madeira, nos galhos e nas folhas. Nos mercados e feiras, é vendida como afrodisíaco”, diz o pesquisador.

Mesmo sem confirmação científica, a maripuama e outras plantas brilham nas farmácias populares da Amazônia.


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O Mercado Adolfo Lisboa, no centro de Manaus, concentra um grande número de vendedores de produtos naturais. São sementes, raízes e cascas, que servem para praticamente todos os males. O comerciante Vanderlei Souza ensina a fazer uma mistura afrodisíaca.

“Primeiro pegamos uma cuia de pitinga virgem. Colocamos 50 gramas de guaraná para cada 100 gramas da mistura. O restante complementa com 10 gramas de mirantã, 10 gramas de catuaba, 10 gramas de nó-de-cachorro e 10 gramas de ginseng”, explica o comerciante.

São 50 gramas de guaraná e dez dos demais.

“O guaraná é um pouco mais fraco que os outros”, justifica Vanderlei.

Mas, afinal, a maripuama é mesmo capaz de melhorar o desempenho sexual de alguém?

“Na pesquisa, estamos tentando provar se isso é verdade ou mito”, diz o botânico Juan Revilla.


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Chás que eliminam miomas

Mito ou verdade? Há quem não espere pela resposta definitiva. Na rota dos pesquisadores, foi encontrado o uxi-amarelo, árvore que alguns brasileiros consideram quase milagrosa.

“A casca do uxi-amarelo é utilizada no tratamento de miomas. É feito um chá, que deve-se deixar ferver bastante. No caso específico do tratamento para mioma e cisto, é necessário tomar meio litro de uxi-amarelo de manhã e meio litro de unha-de-gato pela tarde”, ensina o botânico.

A unha-de-gato é considerada um poderoso anti-inflamatório natural, usado contra gripes e viroses. A erva fortalece o sistema imunológico e também é recurso no tratamento de tumores.

Uxi-amarelo e unha-de-gato. Quantas vezes essa mistura já surpreendeu médicos e pacientes? A professora Carla Ribeiro e a vendedora ambulante Maria Neide Oliveira não se conhecem, mas estão unidas para sempre por histórias muito parecidas.

No consultório médico, a professora e o marido olham emocionados mais uma ultra-sonografia. Durante sete anos, o casal tentou, sem sucesso, ter um filho. Os miomas, tumores benignos no útero, não deixavam.

Carla fez várias cirurgias para extrair os miomas. Mas, depois de um tempo, eles surgiam novamente. Já desanimada, começou a tomar o chá de uxi-amarelo e unha-de-gato.

“O chá foi para redução dos miomas. Comecei em maio e em junho eu engravidei. Um mês depois”, conta Carla.

A gravidez é normal. A cada exame, Carla e Mailer ficam mais ansiosos pela chegada do bebê, que já ganhou um nome.

“É um milagre, uma emoção maravilhosa. Por isso, colocamos o nome de um anjo: Gabriel”, revela Carla.

“Acredito que a gravidez signifique que o chá uxi-amarelo e unha-de-gato atuou e, de alguma maneira, reduziu os miomas que a impediam de engravidar. Com a minha experiência, hoje posso afirmar que ele dá um bom resultado”, diz o médico Afrânio Melo Lins.

“Gabriel é forte. Com certeza, ele quer muito vir ao mundo. Agora que ele está perto de nascer, só quero ver a carinha dele”, diz Carla, ansiosa.


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Outro Gabriel também é forte, saudável. O xodó da mãe.

“Isso aqui é uma benção. Ele é um anjo na minha vida”, exalta Neide.

Um anjo que chegou de surpresa. Em agosto de 2001, o Globo Repórter mostrou o início desta história. Naquela época, Neide só queria acabar com um incômodo provocado pelos miomas. Eram tantos que ela tinha sido aconselhada por médicos a fazer uma histerectomia radical – a retirada cirúrgica do útero, ovário e trompas. Foi quando começou a tomar os chás de uxi-amarelo e unha-de-gato. Cinqüenta dias depois, o susto.

“Eu achava que estava com outra doença, mais grave ainda. Depois de um mês sem menstruar, voltei ao consultório e disse para o médico que achava que estava doente”, lembra Neide.

A resposta do médico foi desconcertante.

“Ele disse que eu estava com o mioma, mas que aquele mioma chorava, tomava mingau. Pensei que ele estivesse brincando comigo”, diz Neide.

Enquanto estiver amamentando Yanno Gabriel, Neide não vai tomar os chás. Mas diz que os últimos exames revelaram que o uxi-amarelo e a unha-de-gato continuam e controlando os miomas.

“Posso assegurar que 90% das pacientes que utilizaram os chás tiveram resultado satisfatório”, diz o médico Afrânio Melo Lins.


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Perigo no meio da noite

A Reserva Ecológica do Jamanduá, no município de Canutama, é administrada pela prefeitura. A cheia é a época da eclosão dos ovos de jacaré. A noite é a melhor hora de encontrar os bichos. No escuro, a floresta se transforma. O verde mágico desaparece e dá lugar ao cinza sombrio, ameaçador.

Mas a maior ameaça está na água. Pequenos pontos luminosos indicam que ele está por perto. São os olhos do maior predador do Brasil. O jacaré-açu parece nunca dormir. A mãe está sempre atenta aos filhotes.

Às vezes, longe da proteção materna, os jacarezinhos se camuflam entre folhas e pedaços de troncos que estão na água. São ainda pequenos, medem não mais do que 30 centímetros, mas já revelam o instinto caçador. Quando crescerem, alguns dos filhotes chegarão a seis metros. Serão representantes legítimos da espécie Açu, um perigo real para os pescadores.

O pescador Alfimar Batista esteve frente a frente com a fera. Ele sobreviveu, mas traz no corpo a marca do ataque do jacaré-açu: parte do antebraço foi amputada.

“A canoa topou em cima dele, e eu caí. Ele, então, pegou meu braço e torceu. Senti muita dor, mas deu para chegar em casa”, conta o pescador.

A vida segue em frente. No Planeta Água, criatividade é a chave para a sobrevivência. A horta é flutuante. O chiqueiro também. A dona de casa Zeneide Batista, mãe de Alfimar, engorda os porcos para uma festa da localidade. Ela sabe que, na beira do rio, qualquer descuido pode ser fatal.

“Periga da cobra pegar o chiqueiro. Quando a gente está dormindo no quarto, o jacaré sobe para a cozinha, derrubando as minhas panelas. Antes, eu criava os animais em terra, mas a onça vinha e pegava”, conta a moradora.

No pouco tempo livre que tem, o capitão-tenente Ricardo Pinto, segundo homem na hierarquia do navio, aproveita para curtir as imagens do mundo que ele voluntariamente buscou conhecer.

“Acho que todo brasileiro deveria conhecer a Amazônia melhor. Eu estou tendo essa oportunidade graças ao Navio-Hospital Carlos Chagas. É uma oportunidade ímpar, que jamais vou esquecer”, diz o capitão-tenente.


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Entre botos e pássaros

Um ditado popular diz que no verão, entre maio e outubro, chove todo dia na Amazônia. No inverno, de novembro a abril, chove o dia todo. Em praticamente metade do ano, a região é atingida pela cheia. A água sobe até 20 metros, inundando a floresta. Torna mais difícil a visão de animais como o sagüi-de-bigode. Já os botos tucuxi saltam. Sinal de fartura do principal alimento deles, o peixe.

Do helicóptero, são vistos os lagos da Reserva Biológica do Abufari, em Tapauá. Nesta época, o parque fica praticamente todo embaixo d'água. Os pássaros reinam na área alagada. A cigana só come folhas e é considerada pré-histórica. A ave tem vôo curto e pouso desajeitado. A inhuma tem pernas longas e dedos grandes. Mas não são as aves que preocupam o chefe da reserva, Jackson Pantoja Lima.

Abufari é um berçário de quelônios, como a tartaruga, o iaçá e o tracajá – alvos preferidos dos traficantes de animais. Imagens feitas por ele mostram a desova das tartarugas nas praias do Abufari durante o verão. Um espetáculo que traz à vida 200 mil filhotes por ano. Só 20 sobrevivem aos predadores.

“A pesca para os ribeirinhos se alimentarem não é proibida. No entanto, o comércio tem que ser combatido. O grande problema do Ibama é o comércio de quelônios”, constata Jackson.

Na cheia, o tambaqui se alimenta de frutas e castanhas. Neste período, o peixe fica protegido pela lei, mas não escapa dos predadores. Um tambaqui que pesava 32 quilos foi encontrado pelos fiscais do Ibama escondido entre outras espécies no porão de um barco de pesca.

“Ele é considerado o peixe mais saboroso da Amazônia”, conta o chefe da reserva.

Todos os animais pescados ou caçados ilegalmente e apreendidos pelo Ibama são doados aos moradores das localidades à beira dos rios.


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A cidade das grávidas

Canutama é a terceira maior cidade do Médio Purus. O navio chega e atraca em um cais improvisado. A operação altera a rotina da cidade. Durante os próximos dias, é do Carlos Chagas que virá o alívio que os moradores esperam: a cura da doença, o fim da dor, a confirmação de que tudo vai bem na gravidez.

Canutama foi o lugar em que os médicos da Marinha atenderam ao maior número de grávidas: quase 60. Muitas são ainda meninas. Por falta de conhecimento e orientação, casam cedo, como as mães, as avós e bisavós. Como a dona de casa Maria de Araújo, que era ainda adolescente quando se casou com o pescador Antônio de Araújo.

“Olhava para ele e dizia: Seu desgraçado, se você me deixar, eu vou te matar. Em uma semana ele resolveu tudo”, lembra dona Maria.

Em 29 anos de casamento, eles tiveram 16 filhos.

“Eles achavam que quanto mais filhos melhor para eles quando estivessem velhos”, comenta um dos filhos do casal.

“Se eu pudesse, teria mais. Eu queria mesmo uns 25”. Revela o pescador.


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A maior parteira do rio Purus

Na missão pelo Rio Purus, o Navio-Hospital Carlos Chagas chega à Boca do Tapauá. O atendimento entope o posto de saúde da localidade. Os médicos encontram muito trabalho. A representante do Programa Nacional de Imunizações também.

Mas a consulta, em uma das salas do posto, não tem nada a ver com o atendimento da Marinha. É Maria Nazaré Araújo, parteira do vilarejo, em mais um exame pré-natal. Faz 36 anos que dona Maria Nazaré ajudou a primeira criança a vir ao mundo. Não parou mais. Em fevereiro, já tinham sido 732 partos. Ou, como ela mesma considera, 732 filhos. Alguns até podem ser considerados netos.

Mas um dia, há 17 anos, a parteira que ajudou tanta gente, também precisou de ajuda. Submetida a uma cesariana, na sala de cirurgia do Navio-Hospital Carlos Chagas, deu à luz a uma bela jovem, que, em homenagem ao navio e ao médico que fez o parto, recebeu o nome de Ana Carla.

“Meus colegas têm inveja por eu ter nascido no navio. Tem gente que diz que queria ter nascido pelo menos na proa”, conta ela.

Atualmente, Ana Carla trabalha na estação de rádio da comunidade. Está juntando dinheiro.

“Meu sonho é ser médica e trabalhar no navio”, revela a jovem.

Enquanto o futuro não vem, Ana Carla presta atenção ao presente, observa a dedicação e a criatividade dos médicos da Marinha.


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Consultório improvisado

Às vezes, em algumas localidades, é preciso improvisar o atendimento. Em Boca do Tapauá, por exemplo, a sombra de uma árvore muito comum na região, a cuieira, foi escolhida para abrigar o consultório dos dentistas.

A cuieira, ou pé-de-cabaça como também é conhecida a árvore, alivia dentistas e pacientes do forte calor da tarde.

Ainda assim, o tenente Oswaldo sua para arrancar um dente. Quanta gente na fila da espera! Como é dura a vida de quem mora naquele pedaço esquecido do Brasil.

Distante do vilarejo há roças de mandioca às margens do Rio Purus. Mais adiante, a movimentação na casa de farinha.

A dona de casa Maria do Socorro Nascimento e os filhos trabalham duro. Na beira do forno, dona Maria do Socorro usa uma pá de madeira para mexer e secar a farinha.


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A farinha de mandioca feita no local vai alimentar a família durante a cheia do rio. Sem energia elétrica, o ribeirinho não tem como armazenar alimentos. Com exceção da carne, que é salgada e depois guardada em lugar seguro por um bom tempo.

Além de salgar, o ribeirinho tem outra maneira para conservar a pesca ou a caça: manter o bicho vivo, porque não existe geladeira.

“Quando chegar a hora em que não tiver o que comer, a gente mata”, conta Francisco Nascimento, filho de dona Maria.

Quase hora do almoço. O Carlos Chagas rasga a correnteza rio acima. Da margem, moradores acenam. Usam panos e toalhas para chamar a atenção do navio. O comandante observa mais de perto e confirma o pedido de ajuda. Manda reduzir a velocidade.

“A gente sempre pára para verificar, ainda que isso implique em um pequeno atraso na programação da viagem”, diz o capitão de corveta Paulo Diamantino Rangel.

Em poucos minutos, uma lancha parte em direção a Frangulhão. A equipe médica do navio reúne os moradores e seleciona os casos que podem ser resolvidos em terra firme. Como o da pequena Eliana, de apenas 1 ano. A mãe, Claudecir Silva, diz que o bebê sofre de dores de cabeça. Sem medicamentos, ela usou uma receita que herdou dos mais velhos da vila.

“A gente passa pasta de dente na testa. Acho que a dor de cabeça passou, porque ela parou de chorar”, conta Claudecir.


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Alguns doentes só podem ser atendidos no navio. A dona de casa Gracilene Souza embarca na voadeira. Há oito dias ela sofria com um ferrão de arraia espetado no pé.

“A dor não passa, parece que a perna vai ser arrancada”, diz Gracilene.

Ela mal acredita que vai se livrar da dor, companheira de muitas noites em claro. Se lembra do que fez para aliviar o sofrimento.

“Preparava o fogareiro e apoiava a perna, aos gritos. Até desmaiei”, conta a moradora.

O atendimento é rápido. Em menos de 15 minutos, os pacientes já estão deixando o navio aliviados. Voltam para casa com remédios e ataduras e a certeza de que, mais uma vez, a medicina venceu a dor.


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Um Brasil esquecido

Para os médicos de um navio como o Carlos Chagas, os desafios não têm hora. A lancha segue a caminho de Itapuru. Os médicos vão investigar um caso suspeito de malária. Sem iluminação, não é fácil seguir a trilha. Em casa, dona Juliana está deitada na rede. Ela fala com dificuldade.

“Estou com enjôo, não posso me alimentar”, relata a paciente.

O termômetro confirma que a temperatura é alta.

“Ela está com 38,5ºC”, anuncia um dos médicos.

Pela febre, os médicos arriscam um palpite: pode ser malária, doença comum na Amazônia. Mas só a análise do sangue de dona Juliana pode confirmar o diagnóstico. Não há tempo a perder.

“Vamos levá-la para o navio”, diz um dos médicos.

E logo ela está a bordo do Carlos Chagas. Imediatamente, o sangue começa a ser examinado no laboratório. Para médicos e paciente, são momentos de angústia, à espera do resultado.

O laudo trouxe a surpresa: dona Juliana está com infecção urinária. Mas, para alívio dos médicos, o exame deu negativo para malária. E há, ainda, uma novidade que ninguém esperava: ela está grávida.

Depois de uma boa noite de sono, medicada e alimentada, dona Juliana vai voltar para casa e contar para a família a boa nova.

“Estou me sentindo bastante melhor. Já tenho dez filhos, este vai ser o 11º. É o jeito, né”, resume a moradora.

Mais um filho em um lugar tão abandonado. Como será a vida dele?

O Rio Purus é o retrato de um Brasil esquecido e doente. Os navios de assistência médica, que levam alívio momentâneo, são como bandeirantes do século 21. Médicos e caboclos troca, saúde por sabedoria. Dividem segredos das matas. Trocam receitas de sobrevivência. Talvez seja hora de reforçar o atendimento na região, para plantar de vez a cidadania às margens do Purus e dos outros rio amazônicos.


Localização

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O Rio Purus ocupa uma área considerada de extrema importância
para o uso sustentável e conservação da biodiversidade.


Making of
Viagem inesquecível, por Ari Peixoto

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Antes de escrever este texto, decidi que gostaria de começar com alguém, um personagem que tivesse me marcado durante a viagem a bordo do Navio de Assistência Médica Carlos Chagas. Mas logo percebi que não havia um "alguém". Ao contrário, praticamente todas os ribeirinhos com quem travei conhecimento me deixaram muito impressionado: a força de dona Maria, parteira de mais de 700 crianças; a resistência de Gracilene, que sofreu o diabo com um ferrão de arraia espetado no pé durante oito dias; a resignação de dona Juliana, com suspeita de malária, mas que, na verdade, tinha infecção urinária e estava grávida (e a quem perguntei se estava feliz com a notícia e ouvi como resposta: "É o jeito, né"); a esperteza de Ana Carla; a gratidão de Joyce; e a coragem de homens e mulheres que tiveram seus dentes arrancados.

Foi, como muitos certamente já perceberam, minha primeira vez na Amazônia. E, sem querer parodiar aquele comercial, minha primeira vez será inesquecível. Afinal, como apagar da memória as cores e os sons da mata e dos rios? O povo bom, bravo e lutador de localidades como Beruri, Cuiuanã, Itapuru, Paricatuba, Supiá, Beabá, Frangulhão, Seringal do Tambaqui, Membeca, Baturité, Curupati, Boca do Tapauá, Gloria do Ronca, Canutama?

E não esquecer o que vi e vivi é até uma forma de homenagear uma população, essa sim, esquecida, sem direito ao básico da assistência médica regular, que no início do século 21 ainda tem que contar mais com o que a floresta generosamente lhe dá – raízes, cascas, sementes que se tornam chás, infusões e bebidas para aliviar as dores – do que com a medicina tradicional, que pacientemente espera a passagem de navios como o Carlos Chagas para ter, ainda que por breves momentos, a sensação de cidadania.

O repórter-cinematográfico José Henrique, o operador Eduardo Barros, o diretor da reportagem Jotair Assad e eu, que passamos uma semana navegando no Rio Purus, fazendo este programa, vimos de perto a dedicação dos profissionais médicos da Marinha (dois farmacêuticos, dois clínicos-gerais, dois dentistas, um ortopedista e um pediatra), no atendimento às populações ribeirinhas. Aprendemos muito com eles e com os demais tripulantes do navio – e do helicóptero, com quem conseguimos conciliar os interesses da reportagem e da viagem. Por isso, ao agradecimento por termos sido testemunhas de um trabalho notável, gostaria de juntar uma solicitação: a de que missões como esta, pelo sinuoso Purus, ou pelos outros rios da Amazônia, sejam mais freqüentes. O ribeirinho merece. E o Brasil não pode continuar esquecendo dos seus filhos.

Equipe

Direção: Jotair Assad;
Reportagem: Ari Peixoto;
Produção: Cláudia Guimarães;
Edição de Imagens: João Marcos Rocha,
Lilian Cavalheiro, e
Pedro Rodrigues;
Imagens: José Henrique;
Técnica: Carlos Eduardo Barros.


Informações

Chá de uxi-amarelo
Utilizado no tratamento de miomas.

Ingredientes: Casca de uxi-amarelo e água

Modo de fazer: Levar ao fogo e deixar ferver bem.

Tomar meio litro do chá de uxi-amarelo de manhã e meio litro de chá de unha-de-gato à tarde. A unha-de-gato é considerada um poderoso anti-inflamatório natural. A erva, usada contra gripes e viroses, fortalece o sistema imunológico e também é recurso no tratamento de tumores.

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